A influência dos Estados Unidos da América sobre o resto do mundo é real. Por isso mesmo, o que se passa por lá tem, em alguns aspectos, a ver com os europeus e não apenas com eles. Muito se disse e escreveu, antes e depois, sobre as eleições presidenciais. Muito, e em muitos tons, se comentou o resultado final, na óptica das esperanças, alimentadas ou frustradas. Porém, quem votou foram os americanos e não os políticos e os jornalistas de opinião do velho continente. Lemos a seguir, em profusão, o modo como uns curam as frustrações e outros se esfalfam para encontrar resposta quer para o “desastre ocorrido”, quer para festejar a “salvação da América e do mundo”. Não se vê muita gente, mormente do lado dos desiludidos, a reconhecer que a democracia funcionou. Mais do que picar o balão ou discutir a sua cor, talvez seja mais importante neste momento, não impedir que ele suba. Tive as perplexidades de toda a gente atenta. Não valia a pena torcer por um ou por outro candidato. Havia razões a ponderar de qualquer dos lados. Eu, porém, não era eleitor e o povo americano chamado às urnas, teria sempre as suas razões para escolher. Temos que nos habituar todos ao jogo democrático. As decisões finais, em democracia, nunca serão dogmas indiscutíveis, mas apenas o processo possível e normal para dirimir caminhos a seguir nos regimes pluralistas em liberdade. De muitos males, o menor. As pessoas livres não podem deixar de apreciar todos os dados do problema ao seu alcance, porque na vida das pessoas e dos povos nunca está tudo bem, nem tudo mal. A perplexidade é sempre incómoda para quem quer opinar, mas, mais ainda, para quem interfere na solução. Os críticos que não sujam as mãos na massa para que ela levede a seu tempo, não estão ao mesmo nível de quem terá de arrostar, mais cedo ou mais tarde, com as consequências da sua legítima opção. Por isso mesmo, fazer uma leitura dos factos a observá-los apenas por olhares pessoais interessados, é deixar sem base as opiniões dispendidas. Por cá e pela Europa inteligente, encontrou-se a grande resposta para a vitória final. Há sempre gente que traz no bolso e à mão a “pedra filosofal”. “A vitória de Bush deve-se ao voto religioso”, diz-se. Mais uma vez, a cartilha que se abre, como oráculo, para explicar tudo, resume-se à luminosa alternativa de conservadores e progressistas. Demos por adquirido, o que não é evidente, que o dito “voto religioso” pesou muito na vitória. Porém, se há americanos com a consciência de que os valores religiosos pesam na coesão social e familiar, no equilíbrio das relações e na abertura às causas que exigem solidariedade afectiva, onde está o crime? Será mais respeitável o facciosismo ideológico, o individualismo exacerbado, o niilismo ético, a falta de responsabilidade ante compromissos publicamente assumidos, tudo isso que por aí se apregoa como sinal de progresso e que está atirando a Europa para um vazio trágico? Se na livre opção dos votantes houve preocupação pelo bem comum e a sua adesão religiosa pesou na decisão, onde o mal para a Europa ou para o mundo? O vazio ético só pode levar a um nada desagregador. A morte só é capaz de gerar morte, e onde não existirem ou não se respeitarem e defenderem valores universais de referência, mais desumanizada estará a sociedade. A Europa actual nem tem coesão nem projecto, e parece que nem vontade de os ter. O perigo está aí. Não há que procurar longe a desculpa para o nada que nos está invadindo. Está connosco a doença e a cura. Não há que fugir à responsabilidade do que nos cabe.Diário de Aveiro |