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10-03-2005

Ideologia, protesto e senso comum


Pluralidade

O resultado das últimas eleições, inequívoco na sua expressão democrática, permite, a quem quiser, uma leitura livre e uma apreciação motivada, que pode ser não coincidente com outras, mormente as do aparelho partidário ou as de muitos jornalistas de opinião. Não me coíbo de o fazer também, que é sempre uma maneira de estar presente activamente aos acontecimentos, com um contributo que não compromete senão a mim próprio.

Como são partidos políticos rotulados os que concorrem ao acto eleitoral e não é permitido ao eleitor exprimir a sua opção senão dentro dessa linha limitada, a leitura dos resultados, se tem um óbvio sentido de vitória, não pode, porém, favorecer uma apreciação unilateral, que decide sobre a cor política do povo no seu conjunto. Bastam outras eleições daqui a uns meses, para se concluir que a grande maioria das pessoas não vota com base em razões ideológicas, mas com motivações ocasionais, determinadas por circunstâncias, acontecimentos ou simpatias pessoais.

A cultura política é pobre e pouco generalizada. Não vai muito além de grupos fechados que não dialogam senão entre si e, mesmo assim, mais com emoções do que com razões. Uma situação a reflectir e a inflectir.

É evidente que às facções políticas partidárias interessa fazer contas de resultados na óptica da sua cor e dos seus interesses, não se coibindo de falar uma linguagem em que, por vezes, nem elas acreditam. A noite de domingo e o rescaldo dos dias seguintes mostrou isso mesmo à saciedade, decretando que Portugal agora é de esquerda e insinuando que, quem não o é ou não o aceita, fica sem palco e razão para que possa querer continuar a ter opinião em contrário.

A democracia termina quando, não lendo a realidade, se impõe um sentido único e os vencedores decidem calar e subverter as opiniões de quem desfruta, aconteça o que aconteça, o direito pleno de cidadania, e não se aniquila perante uma qualquer derrota. Onde não há lugar, no dia a dia, para uma visão plural, impera o despotismo que divide, privilegia-se o clientelismo, empobrece-se a comunidade, desvirtua-se o poder. Os vencedores, quaisquer que eles sejam, não são donos do país, nem os derrotados se têm de resignar a ser cidadãos, que apenas se suportam.

Um sentido positivo da democracia é reconhecer e sublinhar os direitos, deveres, valores e contributo de todos, de modo a que cada acto estimule sempre mais a participação no acto seguinte.

Saber ler um acto eleitoral, como o que vivemos há pouco, não o reduzindo a uma simples opção ideológica, é prova de inteligência e de sensatez. É um facto que a maioria das opções expressas são de protesto, de senso comum, de esperança, de cansaço e desilusão. Isto em nada invalida o resultado final. Quem governar, porém, não o deve nem o pode esquecer.

António Marcelino*
* Bispo de Aveiro


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