O frade capuchinho Sean O’Malley, que era arcebispo de Boston, trocou há dias as suas vestes e sandálias franciscanas por uma espaventosa sotaina vermelha, da cor dos pimentões quentes das ilhas, feita por medida, na alfaiataria da família Gamarelli, que há mais de 200 anos vem vestindo os príncipes da Igreja de Roma. O custo de um enxoval de cardeal anda à volta de 2.500 dólares, segundo revelou o senhor Gamarelli, e pode ir até os 4 mil dólares, agora que o dólar deu em perder o seu antigo orgulho de ser o melhor do mundo e arredores. O novo cardeal O’Malley, que além de humilde, tambem gosta de fazer espírito - como o padre Castelo, de Santo António de Falmouth - ao comentar sobre a nova “fardamenta”, como diria meu pai, disse que esta, por ser vermelha, servia tanto para dentro como para fora da igreja, no caso de ser convidado para uma caçada às perdizes, pelo vice-presidente Chenney. A cor vermelha do hábito podia avisar o vice-presidente - que em política é considerado gavião - de que ali estava um principe da Igreja , e não uma ave de pena qualquer. A cerimónia da coroação dos príncipes da igreja Católica teve lugar na Basilica de S. Pedro, o apóstolo que decerto andava descalço lá pelas areias do Iraque e da Terra Santa, com a pompa e circunstância dos tempos em que a Igreja de Roma não era apenas uma instituição religiosa, mas política, que dominava príncipes e reis de um vasto império. A mesma fase porque está passando agora a religião islâmica, que nos países onde impera domina toda a máquina legislativa, executiva e judicial. E os que saírem da regra de obediência absoluta e diária ao Pai do Céu arriscam-se a dar com os ossos na forca, ou em frente de um pelotão de fusilamento.Era assim, também, em tempos idos, com o império de Roma.
Na verdade, tambem nós passamos por uma fase de fé abrasante, com as “santas” fogueiras inquisitoriais a funcionar, além do garrote e das torturas, idênticas às que o nosso “piedoso” presidente, que é um “cristão renascido” e os seus conselheiros, estavam dando até há pouco aos e suspeitos de terrorismo, nas cadeias de Cuba e do Iraque. Que entre um suspeito de ser infiel ou terrorista, há pouca diferença.
O nosso presidente é um homem de fé sincera e ardente. Dizem que ele está profundamente convencido de que a guerra lhe foi inspirada por Deus, para salvação e democratização dos povos islâmicos que, por mero acaso do destino, são tambem donos de tremendas quantidades de um líquido que faz andar as rodas do mundo. E assim, com um único pau, a guerra mataria dois coelhos. Semearia a democracia liberal nas areias bíblicas do Oriente Médio, e salvaria o ouro negro, sem o qual não funcionam os potentes SUVs made in USA? Infelizmente, parece que esta teocrática tarefa não vai ser fácil. Assim aconteceu no Vietname, onde andámos anos a combater contra uns bandos de asiáticos em ceroulas e onde deixámos mais de 40 mil soldados mortos, para, ao fim e ao cabo, acabarmos por deitar a moxila às costas e regressar a penates.
Democracia verdadeira é uma força aberta, vibrante, que aceita em convívio gente de todas as culturas e todas as fés. E os Estados Unidos são, constitucionalmente, o paradigma máximo desta concepção universalista e humana.
Por isso nenhuma religião fundamentalista aceita de bom grado a democracia. O próprio cristianismo aceita a democracia em convivência, mas não a pratica na totalidade. E por isso a mulher cristã continua em posição subalterna.
É boa para arranjar os altares e costurar as vestes vermelhas dos cardeais, mas não para ministrar o culto. E isto parece estar arreigado na crença de que Deus é macho e que o macho é superior à femea. Vão lá entendê-los.
E tudo isto veio a propósito do franciscano que, de capuchinho passou a cardeal duma das maiores dioceses do país. Mas ele, decerto, vai continuar a preferir o seu hábito de monge, as espaventosas vestes de príncipe da Igreja.
Manuel Calado*
*Jornalista na América |